26 junho, 2007

parece que eu morri


Abro os meus olhos.
Mas são meus pensamentos quem eu pareço enxergar.
Antes eles se misturavam à minha imaginação porém nunca chegaram a se exteriorizar.
É como se o meu verdadeiro eu estivesse atrás das aparências, me esperando com um abraço amigo.
Me levanto do meu colchão que está cheio de vermes e onde um escorpião passeia singelamente.
Me olho no espelho, morro de medo de ver como estou esquelético, meus cabelos estão caindo, meus olhos parecem olhos de um vampiro, mas também parecem olhos de um andróide, de um drogado, de um apaixonado...

No meu peito um esparadrapo podre em pus exala um fedor de masturbar o olfato, ainda sinto um doce sentimento que me rasga o coração como faca de cozinha velha e suja -- mas ele ainda bate como motor de tecnologia de ponta --.
Um gato mia insistentemente atrás da porta, talvez atraído pelo cheiro da putrefação... É um dia violeta lá fora...
Começo a me inquietar.
Começo a procurar algo produtivo pra fazer e parar de pensar na morte da bezerra.
Ligo a TV: todos são bons e belos e trocam de papéis, mas a mensagem é satânica. A única coisa agradável de se ver é o canal de venda de jóias, fazer o quê?
Desligo a TV, ligo o rádio: "Carlota Joaquina sai da história dos livros e entra na política brasileira, leia no jornal...".
Desligo o rádio.

Crio coragem e saio de casa pra comprar cigarro, pão, patê, leite e alface -- esses dois últimos me disseram que são bons soníferos naturais --.
Chego no boteco, mas a mulher não quer me vender fiado.
Chamo ela de má comerciante, que não sabe negociar, burguesa. Ela chama o marido e eu vou embora.
Na rua tenho a sensação de estar no meio de um nevoeiro, como no filme "Os Outros", entre uma significativa troca de olhar e outra, parece sempre que sabem de alguma coisa que eu não sei.
Parece tarde...
Parece cedo...
Pareço corajoso...
Mas no fundo tenho medo.

Vejo um cavalo na frente da baia, trocamos olhares significativos também.
Entro em casa, deixo a porta aberta. Entra o neto do dono da minha baia, deita no meu colchão e liga a TV de intrometido.

Odeio esse capeta, mas eis que sinto um prazer intenso em olhar no lume dos seus olhinhos que miram a TV enquanto ele conta suas mentirinhas. Chega o cachorro dele rosnando e arregaçando os dentes pra mim. O seu dono o acalma e os dois vão juntos pro estacionamento de caminhões.
Me deito no meu colchão clandestino.
Faço minhas preces do São Cipriano. Termino.
Pego pra ler o livro "Servidão Humana" de Somerset Maugham. Meus olhos descansam à luz de velas a noite inteira...

Não gostei da estória. Largo o livro do lado do relógio que meu pai colocou do lado da minha cama oficial perfumada com sol -- são 5 da manhã. Paro pra pensar.
Pensando bem, esse meu novo eu é tudo o que eu sempre quis. Estou pronto pra ser artista, ou outra coisa que me dê dinheiro e poder. Pra que eu possa falar pra todo mundo o segredo do universo, com muita paz e amor...

Os mortos andam entre os vivos.

Eu pelo menos sei que ando, mesmo falecido.
Traço os meus planos como se eu estivesse em outro plano, onde eu surfo numa onda diferente, aciono minhas alavancas, espero sair atropelando tudo e todos.

Me levanto, me arrumo. Vou pro centro da cidade.
Faço minha identidade, pareço atraente na foto 3x4.
Enfim a maldita e fatigante burocracia.
O funcionário responsável pelo registro das digitais é o porteiro do meu colégio, pelo menos parece ser, finjo não ver.
Ele chama cada um que aguarda na fila de espera dizendo o nome de uma celebridade, e o pior é que o povo atende bem prestativo mesmo e passa se rindo pela catraca.
Vou trabalhar.
Trabalho na rua.

Recebo o irmão de Tranca-Rua, entre saravás e r-12.
Os "porco" me perseguem na nave-mãe. Desde que perdi minha memória peguei ódio fatal por polícia.
Alguns mendigos no pedaço trabalham pra ela.
Eu fico de ouvidos ligados na língua e no sopro, de cada casal que chega desfilando, um mais lindo que o outro.

Vejo a velhinha.
Ela quer que eu a leve pra casa na style. Vou com ela.
Chegamos num lugar que parece um convento. Pergunto pra ela: -- Posso te abraçar?
Ela ri espirituosa e vai embora.
Antes disso sei que estava com uns meio amigos cantando "Lucy in The Sky With Diamonds" na pracinha.

Me lembro de uma briga.
Me lembro de sangue.
Me lembro de um hospital.
Me lembro de Camilla vindo me buscar, minha meio namorada. Ela é punk, toma bola, e fuma um de vez em quando.

Abro os meus olhos.
Ela tá pelada e menstruada:

-- Fiz uma letra pra banda, diz. E recita: 



“Ar Xtranho” 
Diz pra onde eu tenho que olhar
e apontar os carimbos adolescentes
De dentro mais fundo aqui fora
suspiros
(?)

Melhor eu e você
eu tenho que me vingar

Melhor eu e você
eu tenho que te perdoar

Decisões que não foram esquecidas
porque o universo foi mais rápido
Faça o ar psiquiatra por favor
bolo surpresa?

Mama na teta do meio
Saudades da minha ficante
Uma conversa tão anos 60 

Bebe o meu semancol
Depois de fazer as contas
Meus agradecimentos políticos 

Melhor eu e você
eu tenho que me vingar 

Melhor eu e você
eu tenho que te perdoar 




-- Da hora -- eu digo.

Não ligamos pro sangue e começamos a trepar.
Ela diz:

-- Que o amor enterre o amor.

Gozamos.

Ela veste o baby-doll preto e se retira em silêncio.

Estou de novo só.
O efeito é terrível!
Nunca tive esse medo de morrer antes.
Meus pensamentos são como montanha-russa do inferno.

Parece fantasia.
Parece realidade.
Oh morte! Parece que você sorri.
Meu Deus! Parece que eu morri.