01/06/2008

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- Quase me esqueço do almoço.

Svetlana acalma-lhe o coração:

- Já levo tá?...
- Não consigo unir o útil ao agradável - a pomba agradece.

Mas raios de algum outro continente tentam impedi-la de comer peixe e voar. Ela atravessa o restaurante e pousa, ainda meio retardada, debaixo da marquise:

- Vamos ser amigas?.

Svetlana tira o uniforme branco:

- Precisamos marcar a cirurgia.

Mas a pomba, insatisfeita, se dirige ao toalete.

- Como foi de viagem?.
- Ignorei chicórias e agrião, como sempre...

Svetlana vê-se acometida de certa preocupação, e descarrega seu nervosismo lavando a louça:

- Procure tirar todo excesso, querida...
- Vamos jantar fora? minha sereia...

Devido ao envelhecimento precoce, a pomba conseguiu a bolsa-auxílio que permitia que sua doença alçasse vôos maiores; tinha certeza que Svetlana ainda a convidaria para um réquiem digno de apresentação no Fausto Silva:

- Sabe, os melhores momentos da minha vida foram sobre seus ombros, em
ny, extasiava-me com
suas receitas...

Svetlana sente que vai chorar, e aproveita o embalo para escrever um poema, enxugando as mãos e procurando se inspirar:

- Se limpa logo pombinha... "Sua madrugada me espanta não pela palavra perdida/ Não pela beleza de uma bagagem além da vida"...

Relampeja o pensamento oriente:

- Está na hora minha sereia, preciso fazer as malas para a eternidade, não há cura para o que eu sinto.

Svetlana tenta disfarçar a irritação pela interferência poética repentina da pomba:
.
- Fique pelo menos pra tomar um cafezinho.
- It´s time to say goodbye.
- Mas recentes pesquisas têm revelado que nem todos tumores são estatísticos. O projeto de desinfetação da descrença está à pino, não acredite no que os suicidas de plantão têm dito a respeito da oosfera sorrow. Você tem que acreditar em mim, eu imploro!

A pomba tropeça, meio vesga, numa cebola velha abandonada perto de um copo d'água, sito ao lado esquerdo da soleira da cozinha.

- Olha só!...

Svetlana desespera-se:

- ... São três da tarde!
- Já estou decidida, me dê o bilhete, eu preciso ler.

Sua penas esvoaçantes dirigem-se pra cima da geladeira --sob um quadro, no qual uma cobra masca o próprio rabo--, e a chuva começa:

- Olha a chuva aí titia - diz uma voz infantil fugidia: atrizes alertam-se, mas logo voltam à cena final:

- Então era isso minha sereia... Ainda bem que o circo já foi embora - ela dá um arrulhozinho de fadiga, e completa - pra que mentir esse tempo todo?.
- Eu ia lhe pagar tudo em dobro depois...
- Maldição! - a pomba regressa à água de São Jorge, beberica uns finos goles e, inesperadamente --meio grogue e decadente-- cambaleia um bater de asas até as partes íntimas da sereia-mor:
.- Não vou embora sem minha parte.

Afobada, Svetlana corre para o banheiro, esvazia a banheira, e escova dentes com o ácido úrico reminiscente.