06/07/2008

diálogos cênicos brasil-espanha: linguagens híbridas

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O Processo
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Pedimos ao público a gentileza de evitar barulhos desnecessários, pois os microfones, de alta tecnologia, captam todo e qualquer ruído. Em caso de tosse sem controle pedimos, dentro do possível, abafá-la com o uso de lenço. Contamos com sua colaboração e desejamos
a todos um
..,,,,,,,....bom espetáculo.





Ímpetos de vida devidamente interrompidos humpf humpf humpf, não!... Talvez... Cruzes! Minhas costas paralisam-se de novo, mal me sento e já estão batendo pés atrás do espaldar do assento... Na bilheteria não foi muy diferente: transmigrando dos fundamentos sexuais para mais filosófica respiração os tempos de chuva não são responsáveis pela obliteração de discrições públicas, assuntos volúveis pero no-voláteis; dando vida a quem odeia, sempre há o indeciso meio entre quem aguarda de pé e os que aguardam sentados, o parâmetro, cupido ou sei lá o quê que tem de agüentar a pressão dos outros em cima de si. Então seriam ânimos entrecortados de vespertinos qüiproquós que não sabem a hora certa de calar a boca? Ai ai ai... Por que sobre a pessoa mais problemática e desequilibrada há uma escala? Se relações humanas fossem pesquisadas de maneira geral, o diagrama resultante teria curvas que lembrariam uma montanha ao contrário; na base o condenado agüentando tudo, por consegüinte quem se safa do grau mais inferior ascenderia adiante até o fim da imensa base, fim daqueles que conseguiram se livrar de lancinante dor.


Luzes apagam-se, não suficiente os chutes nas minhas costas (talvez involuntários ou definitivamente por pura maldade), automaticamente viro inimigo das primeiras disputas entre acessos de tosse, estalos de oxigenação esquelética, pigarreios e espirros que, ao invés de procurar tratamento adequado, reivindicam os ouvidos mais susceptíveis até que lúgubre música instrumental surge juntamente a um sacerdote católico - como um bebê "de maior" ele traz no colo aquele que daqui a pouco será o primeiro dançarino de la gran noite espiritual. O sacerdote oferece-o à platéia, levanta-lhe ombros e cabeça de maneira que o semblante pareça sustentado por invisível correia, tipo marionete; daê o condenado fica na pontinha da ribalta e a figura religiosa se põe um pouco mais atrás fazendo um sinal manual sincopado com o condenado, como se estivesse girando tipo uma chave do coração e pá! O dançarino começa martirizante peregrinação coreográfica, são movimentos bruscos, que demonstram a culpa e eterno medo da incompreensão.

O padreco se retira, mais tarde saberemos que ele trará mais e mais condenados-dançarinos, urdindo interessantes, exaustivas e repetitivas relações de parasitismo emocional, definindo trágico duelo entre opressor e oprimido, entre o sentimento de culpa e a realidade, entre possibilidades e impossibilidades de ouvir Franz Kafka fazer elogios dentro da tumba. O casal atrás de mim, em controlado pânico, parece começar a se distrair, ufa... Credo! Uma mina, espécie de elo entre condenados e justiça divina, pisa na cara dum rapaz que recita belo poema, interesting... Entre o movimento que busca saída e sua impotência, Franz Kafka ressuscita...

Li a maior obra literária do século XX [era emprestado de uma biblioteca pública, eu perdi quando tava trampando, daê fui na DP dizer que tinham me roubado, o delegado disse "logo esse livro!"... mais tarde tive séria discussão com a bibliotecária do colégio (sempre tenho fortes e turbulentas azarações com bibliotecárias), ela queria que eu reembolsasse novo exemplar, mas um parcêro veio do nada e disse que eu não era obrigado a repor o livro... depois outra bibliotecária comprou outro Processo e comentou comigo a respeito de "Por quem os Sinos Dobram" pra conferir se era eu ladrão de livros e/ou conhecedor da guerra civil espanhola...]. Não fazia muito tempo que sensações macabras acompanhavam-me quando Sr. Joseph K. fez 30 anos. Parecia que era eu quem tinha acordado com imprevisível ordem de prisão, sem a mínima explicação lógica. Não fugi, mas me resignei a tentar compreender do que fui acusado. Na cadeia ninguém dá bola por sua causa, por mais nobre que ela seja. Esperando pelos acontecimentos futuros, pelos próximos trâmites do processo, em nenhum momento cheguei a saber que crime cometi; resistia lendo o livro. Palíndromo de mim mesmo a arrastar uma personalidade que permanece na busca em direção ao abismo - guiado pelo sentimento de que alguma coisa deve ter feito, Joseph K. é levado pela quase insuportável culpa que carrega nas costas.

Vixi... Não demora muito e é a vez da fêmea do casal atrás de mim interromper meus devaneios, ela dá um gritinho estranho quando a fêmea loira do palco caminha sobre um condenado, apontando braços em minha direção, os dedos mexendo-se freneticamente numa demonstração de pequeno e quase imperceptível pedido de socorro (então até uma musa opressora poderia estar sofrendo? Quase me emociono...) A linguagem da dança tem muito a dizer não só nessa hora... A dançarina completa o quadro e olha pra mim! Tento não rir para causar efeito de compaixão necessário como condenado espectador - o que nunca deixou de ser verdade: a assistência é uma arte... Abaixando a cabeça, a mina quase chora e posso ver doce dó a lhe seduzir. Mais tarde, na fila da bilheteria de outro espetáculo, a musa estava com um cara que devia ser seu namorado, ambos muy chics e respeitosos; quando ela virou a cabeça em minha direção inadvertidamente levantei os olhos para a lua e olhos azuis dela mergulharam em memória de pensamentos.
Assisti a emocionante agonia três vezes.

O grupo Borelli independentemente desenvolve pesquisas e criações desde 1997 (quando era o FAR-15), acumulando no repertório treze peças coreográficas (já fizeram adaptações de Carta ao Pai e A Metamorfose). O desejo obsessivo de questionar a existência humana, suas contradições e incertezas contemplou a cia. com programa de fomento à dança no município de Sampa; n´O Processo, a dança exige para si direito ao drama - dizem eles. Todos vestem sapato preto, paletó e calças da mesma cor a la começo de séc. XX. São atuações tão febris que o suor toma conta dos hábitos. Braços fogem, cabeça e peito tencionam em sentidos opostos, é tanta repetição (cada um que chega faz o mesmo que o condenado anterior) que não resta mais nenhum cardíaco na platéia. Dança pesada - a dança é a condenação; um agarra, se apoia na dança do outro, sempre a transferir a musa perversa do amor, que vai enrolando o padreco. Atmosfera kafkaniana a todo vapor. A atualidade das abordagens da condição das almas penadas é desconcertante. A proposta é mesmo desconfortar a platéia - linha mestra dos promissores grupos de teatro e teatro-dança não só da mostra Brasil-Espanha, que ocorreu entre 24 e 29 de julho, no Centro Cultural São Paulo... humpf humpf humpf...

As primeiras pessoas começam a sair, talvez não por terem desgostado do clima sombrio da trilha sonora de Gustavo Domingues e/ou por causa do olhar suplicante dos condenados que faz os mais idosos nunca agüentarem até o fim - eles vão saindo de fininho naquela senilidade horripilante típica, mas sabe-se lá por que tentam fazer o abandono ser visto, se não pelo espetáculo inteiro pelo menos pelas atenções mais propícias a testemunharem semi-furtivas saídas ahuahua, parece que eles nem respiram.... É o aprisionamento e desesperança do homem que traz em si as marcas de um mundo alienado...

A loira-musa articula fulminante sentença, o show encerra a gravação com todos níveis de (des)necessários requintes da interferência humana. Casais terão uma diferente noite de prazer...
Aplausos...
De pé.


http://www.ciaborelli.art.br/

2 comentários:

André disse...

Auhauhauahuahauhauhauhauah
Justamente quando me aparece um texto, eu não sei direito o que comentar... =P
Não li "O Processo", muito embora tenha na biblioteca semi-pública que eu freqüento... Acho que tenho preconceito com o coitado do livro... Não sei...
É incrível... Quase qualquer pessoa que dê a entender que me acha inteligente (comentário alheio e despretensioso) me pergunta se eu gosto de música clássica e se eu gosto do Kafka.
Nunca li Kafka. E de música clássica conheço os nomes dos compositores mais famosos e reconheço as músicas mais famosas... Só não sei relacionar a melodia com o dono. =P
E acho que nunca fui a um espetáculo de dança. Ou teatro-dança. Ou qualquer coisa que o valha.
Logo, não tendo o que falar, eu falo de mim. Para um egocêntrico é o melhor dos comentários...

Anônimo disse...

E eu, louco para assistir essa peça-dança (se bem que toda dança é uma representação...).

Não consegui vê-la. Uma pena. De verdade.

Calebe