11 maio, 2008

festival de exumações microcósmicas

Mãos geladas em primeiro lugar (entram em alarma) assim que passo certificado de reservista (falsificado) à dona do cemitério. Coceira, coceira, coceira no pescoço, coceira nas veias: sou admitido, ossos do meu ofício podem contar com hipótese de um descanso tranqüilo, em paz. Fiz tipo um teste de DNA em todo o caminho do blunt of judah, e não me enganei. Minha intuição recebe uniforme, instruções e luvas de borracha amarela. Atestado médico, também falcatrua, com aval da própria empregadora, suave... Falo que sou poeta: enquanto acaricia meu rádio ela adocica a voz, e pede que eu mande minha arte por e-mail. Trabalho no calorão, eu e o túmulo, túmulo e eu. Em plena segunda-feira, secretamente, bebo um pouco de vinho: estopim de vômito friamente fracionado em 7 dias, 7 noites, 7 velas pretas, numa festinha subterrânea e particular de Baco - que recebe meu suor-fantasia, minhas lágrimas-atrizes, e meus sorrisos coadjuvantes. Pretendo encontrar a mim mesmo num festival de exumações microcósmicas, num revival de exorcismos voluntários. Minha vida passada me aguarda na ala da 2° guerra mundial. Todo corpo, todo corpo, expio meus encostos e crenças, mariposas negras na clavícula, stanislavskiamente acaloradas. Passado nos perfumes, vovó no esterno, minha taróloga no atlas, paixão na sexta, black sabbath na folga e ressurreição no domingo, perfeito. Se essa patroa não pegar muito no meu pé posso até pensar em ficar 6 meses pra depois me encostar no INSS como esquizofrênico. Botam tranqüilizantes demais nas bocas de rango, preciso ter meu esqueleto encantado custe o que custar.
No fim do expediente vou fazer meu happy-hour na taróloga: bebemos vinho, ela acende velas, fecha a tenda e, espantada, não acredita nas cartas boas que tira. Meu jejum agradece: último cigarro.

2° dia: Briga de mundo contra sub-mundo na ala da gripe espanhola, tento tranqüilizar inospidez desoladora e logo o barulho das crianças endiabradas, brincando, ameniza solidão. Sem ninguém por perto me encontro pela primeira vez: tiro a galinha do saco: minha terra mata a sede, acendo velas, me abandono. Os góticos estiveram aqui de madrugada pra fumar maconha e se esqueceram de limpar o local onde fizeram uma macumba inspirada em livro wicca: vou denunciar o sacrifício à patroa (leiga): a magia saxônica não deve ter nada a ver com a iorubá e, conforme falou-me na véspera, despachos já são costume da região.
Ela aproveita para dizer que viu muito de Baudelaire nos arremates da minha poesia. Encerramento: na taróloga mais paquera do que agouros, última punheta.

Tríplice esperança murmura, madura: estouro bolhas na mão mais afoita com a vassoura - ontem, no contorno das capelinhas decrépitas, provavelmente com folhas caídas há mais de um mês. Almoço manjar branco com cobertura de cinzas, a patroa pede que eu trabalhe de maneira mais rústica: embora meus olhos estejam encovados, conquisto seu coração. Ela vai embora. Dirijo-me ao berço, como a terra abençoada. Nenhuma suspeita cai na madrugada da omoplata. Pinto de cinza a ala das crianças: o céu chora seus mortos, anjos molhados de sangue. Penso em Mortícia, sou padrinho de Gabriel, seu filho. Fazíamos as melhores festas black metal de Viamão. Desde essa época uma bibliotecária, Morgana, 7° filha, alternava o foco do seu papo com uma plantinha - que tratava muy bem - pra conversar comigo enquanto catalogava certos destinos evasivos, que ironia... estava hipnotizado e tentava disfarçar quando ela conversava com a planta, mas sua aguda visão periférica perguntou-me por que eu ainda não tinha virado ator... Fim do trampo: componho Tentativa #1 no boteco de Margot, a portuguesa: último café c/ leite. Mais tarde na tenda sombria a taróloga se redime e diz que Jesus é a verdade, o caminho, e a salvação.

Quadratura de aquário com peixes: fogo-fátuo #2 diz que tem uma doença incurável, Você já está morta minha filha. Ela não aceita minha constatação e, relutante, se esperneia no chão, ficando invisível aos poucos, até desaparecer por completo... Vai prum centro espírita minha filha... Na assunção de voto remexo o sacro, no intervalo escrevo um poema sobre paralisia com falanges clandestinas, crânios vermelhos reverberantes e pés emocionados numa correnteza negra, fixa, e pura, arrastando possibilidades: Zumbi. Vozes femininas costuram reflexos debaixo do meu calcanhar: Estamira (ainda vocifera um colo surdo aos meus ouvidos sovados pela revanche das gralhas). Não vou na taróloga. Última mania de agradar quem me desconsidera. Em casa vejo Hair e componho Foguete Transanônimo.
Sexta-feira da Paixão: me acordo enxergando apenas vermelho, branco, e preto, aliás, acordo daydreaming num mundo afogado. A patroa tinha dito que quase não havia enterros mas quando chego no cemita tem um: não sabia que os próprios filhos enterravam os pais, bu... Odeio ver dor alheia, estalo os dedos, dou-lhes folga, bato cabeça no meu túmulo, acendo a quinta vela. Última preguiça: durmo em paz.

Black Sabbath: feriado (esqueci de dizer que o cemitério é israelita). Me acordo com um espelho na frente do meu corpo, nu - dormi no motel Gurgel -, sem bom-dia nem maiores explicações, a taróloga veste roupão preto e vai pagar o pernoite. De madrugada invado o cemitério, me desenterro por completo - roupas úmidas e sujas porém ainda usáveis, coturnos e insígnias idem, dente de ouro, punhal de prata, levei tudo comigo... Será que o Paulo Coelho estava certo? Lá vou eu sei lá pra onde. No motel a taróloga diz que não é mais preciso esperar 40 anos com frio no osso pra vida ser artisticamente feliz... Último desmoronamento.

7° dia: eis a verdadeira felicidade: ela mora em nós mesmos. A patroa me põe de castigo pelo fato de eu ter pego no sono, perfeito; sonhar com cemitério é de bom auspício: me demito. É tão estranho, meu fêmur, meu crânio, meu trapézio, meu nome...
Acompanhamento fúnebre comove o vilarejo.
De repente caio em velha estrutura de queda. A morte nada mais é do que sono rápido em sonho eterno. Sinto minha carne, minha pele sem mosquitos. Portas, chaves, e tesouros redescobertos. No meu monólogo mudo e escuro guardo segredo do passado e do futuro: vivo o presente. Oh! Tétrico ambiente, você esconde verdadeira luz. A taróloga diz Vá, ragazzo innamorato, vá!
Último suspiro.

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